14.07.2019 | 07h:40

“WOODSTOCK BRASILEIRO”


Documentário revive festival de rock criado por advogado de Cuiabá

Evento é o grande feito, mas apenas uma das inúmeras histórias de Antonio Checchin o "Leivinha"

Alair Ribeiro/MidiaNews

O advogado Antonio Checchin Junior, o Leivinha, criador do "Woodstock brasileiro"

Estudante de engenharia, teatrólogo, ator, integrante de banda de rock, jogador de futebol, produtor cultural, fazendeiro, advogado e dono de pousada. Bauru, Iacanga, São Carlos, Mogi das Cruzes, Cuiabá e Chapada dos Guimarães. No meio de tudo, uma viagem transformadora pela América do Sul.  As muitas vidas e os inúmeros caminhos de Antonio Checchin Junior, ou "Levinha", quase não cabem em seus 67 anos de idade.

 

Hoje advogado em Cuiabá e dono de uma pousada em um ponto paradisíaco da Chapada, Leivinha é, para além das incontáveis facetas, o personagem central de uma história quase esquecida da cultura brasileira e que foi resgatada em um documentário recém-lançado no País.

 

O delegado disse que proibiria qualquer manifestação com grande aglomeração de pessoas. Falei que ia levar só umas 2 mil

Com dez anos de pesquisa documental, “O Barato da Iacanga”, do diretor Thiago Mattar, revive o Festival de Águas de Claras, um evento musical paz e amor criado no momento mais agudo da repressão militar no Brasil. Suas quatro edições – entre os anos de 1975 e 1984 – reuniram nomes como João Gilberto, Raul Seixas, Erasmo Carlos e Gilberto Gil, em apresentações que chegaram a atrair mais de 100 mil pessoas. E o que também é espantoso: no meio do nada.

 

O “Woodstock brasileiro”, como também ficou conhecido o evento numa referência ao mítico festival norte-americano, teve lugar na fazenda da família de Leivinha – por iniciativa e teimosia do próprio - na minúscula Iacanga, uma cidade na região de Bauru (SP) com pouco mais de 5 mil habitantes à época.

 

A ideia de fazer “algo diferente”, nas palavras do idealizador, começou a se cristalizar no início da década de 70, quando Leivinha tinha pouco mais de 20 anos. Ele estudava Engenharia em Mogi das Cruzes (SP), mas decidiu “dar um tempo” quando amigos seus morreram em um acidente de trem, em um episódio marcante em sua vida. “Eu estava quase concluindo a faculdade. Faltavam três meses. Vi que iria me formar e não conhecia o Mundo, não conhecia nada. E que se continuasse na Engenharia, ia acabar trabalhando e só. Decidi parar e viajar, para desespero de minha família”, relata.

 

No retorno de seu giro pela América do Sul, Leivinha era outra pessoa. “Cabelo comprido, barba longa... Enfim, voltei com outra cabeça”, lembra-se.

 

O estalo para o Woodstook brasileiro aconteceu nesta fase "bicho-grilo" de sua vida, durante um passeio a cavalo pela fazenda da família. Ao avistar um descampado, logo imaginou “aquilo cheio de gente”. Na época escrevendo e musicando uma peça, ele vislumbrou a apresentação de seu grupo teatral em uma grande festa naquele enorme espaço vazio.

 

“Cheguei na cozinha de casa e comecei a conversar com meu pai sobre a ideia. Nossa caseira, dona Cândida, ouviu e falou que, se eu fizesse a festa, ela prepararia uma sopa de mandioca para os convidados. Era o que eu precisava ouvir. A festa estava garantida”, diz.

 

Aquilo que era para ser uma apresentação teatral com festa logo se transformaria em festival no boca a boca iacanguense. “Tinha um amigo meu que comentou com alguém que eu estava fazendo uma festa – e que já não era mais uma festa, era um festival”, recorda.

 

Nas semanas seguintes, Leivinha começou a receber incontáveis telefonemas de pessoas interessadas em tocar no evento. “Quando me dei conta, havia uns 20 grupos dispostos a se apresentar”.

 

Empolgado com o burburinho, ele intuiu que poderia fazer algo maior. E aí se aproveitou de sua boa relação com o guitarrista Sérgio Dias e o baixista Liminha, da banda Os Mutantes, e com integrantes do Som Nosso de Cada Dia, expoentes do rock no começo dos anos 70. Com os contatos certos e coragem de sobra, conseguiu organizar a festa - e que festa!

 

O Festival de Águas Claras aconteceu, enfim, em janeiro de 1975. Mas antes, Leivinha precisou superar a burocracia estatal e repressiva da ditadura militar, com direito a reuniões no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e a assinatura de um termo de compromisso no qual garantia aos militares que manteria a ordem durante as apresentações. “Assinei o documento sem ler. Se lesse, não assinaria. Se não assinasse, não haveria festival”, recorda. 

 

“O delegado disse que proibiria qualquer manifestação com grande aglomeração. Falei que ia levar só umas 2 mil. Que eram apenas meus amigos, uma festinha... Mas eu sabia que dava para levar umas 10 mil pessoas”, relata. Um engenhoso esquema de divulgação pré-internet, que incluía propaganda boca a boca massiva nas universidades, teve efeito algo além do esperado. “Apareceram umas 30 mil pessoas. Foi um espanto!”.

 

A primeira edição resumiu-se essencialmente a nomes do rock progressivo paulista, como as bandas Moto Perpétuo, liderada por um certo Guilherme Arantes, Som Nosso de Cada Dia e O Terço. Também se apresentou a banda Nushkurallah, que tinha como integrante o músico...Leivinha.

 

Veja o trailler do filme:

 

 

O festival foi um sucesso, mas custou caro para o organizador, que seria detido, e até mesmo para o destino de outros eventos musicais em São Paulo.

 

Em um documento da época, o então ministro da Justiça Armando Falcão expôs a visão da ditadura sobre o fim de semana em Iacanga. “Durante a realização, o uso de entorpecentes, bebidas alcoólicas e atos imorais foram abertamente praticados; aproveitando-se do ambiente próprio, propagadores de ideias subversivas vinculavam propagandas com as seguintes frases: ‘Viva a Mocidade Socialista’, ‘Viva Che Guevara’, ‘Viva a liberdade estudantil’”, consta no documento.

 

Em razão do caráter subversivo e do consumo de drogas em Águas Claras, a repressão militar proibiu aglomerações semelhantes.

 

Mas não por muito tempo.

 

No ano seguinte, Leivinha conseguiria um outro feito, driblando a seu modo o veto militar. Adequando-se às diretrizes do momento, organizou um festival no estádio do Morumbi – ele tinha boas relações no time do São Paulo, onde chegou a jogar futebol - mesclando atrações musicais como Zimbo Trio e Gilberto Gil com esportes olímpicos. 

 

“E esse evento os militares não proibiram, porque tinha música e esporte. E aí eu vi que teria que ir por esse caminho. Não podia falar que faria um festival de rock, porque para eles isso era coisa de maconheiro barbudo. Vi que o negócio era fazer festival de música popular brasileira, para que todos fossem incluídos”, diz. Assim, começava a brotar a ideia da segunda edição do Festival de Águas Claras, que ocorreria em 1981, já em um período de maior abertura na ditadura militar.  Entre o primeiro e o segundo, Leivinha engatou uma faculdade de Direito, profissão que abraçaria anos mais tarde, menos por vocação e desejo e mais por necessidade.

 

A partir da edição de 1981 - realizada em um final de semana de setembro -, o Festival de Águas Claras se profissionalizou de vez, com patrocínio de grandes empresas e transmissão pela TV Bandeirantes. Como havia idealizado e prometido, Leivinha fez na segunda edição uma mescla de estilos, com shows de Gilberto Gil, Raul Seixas, Egberto Gismonti, Alceu Valença e até mesmo Duduca & Dalvan.  Ou seja, tropicália, MPB, rock e sertanejo. Assim o evento deixava de ser coisa só de maconheiro.

 

Mas foi em 1983 que Águas Claras atingiu o ápice, com shows de cantores como Erasmo Carlos, Paulinho da Viola, Jorge Mautner e Arthur Moreira Lima. E mais – muito mais: João Gilberto, o gênio da música brasileira que morreu no último dia 6 de julho. Sistemático, urbano e arredio, "o pai da bossa nova" topou cantar naquela longínqua fazenda em Iacanga, em uma de suas raras apresentações ao ar livre.

 

“No festival de 83 eu precisava de algo novo. E decidi que levaria o João Gilberto. A primeira coisa que disseram era que eu estava com febre”, brinca Leivinha, recordando-se da personalidade do cantor, famoso, entre outras esquisitices, por não cumprir compromissos.

 

Com os contatos certos, Leivinha conseguiu fazer com que o convite chegasse a João Gilberto. O cantor fez apenas uma exigência: queria um carro para dirigir do Rio de Janeiro até Iacanga. Esta passagem, aliás, rendeu uma das cenas mais divertidas do documentário.

  

Assista à apresentação de João Gilberto no Festival de Águas Claras:

  

 

O começo do fim

 

O sucesso da terceira edição, em junho de 1983, precipitou nos patrocinadores o desejo de engatar a quarta, impondo como data o chuvoso mês de fevereiro, já no ano seguinte. “Depois dessas exigências para eu fazer outra edição tão em cima da anterior, vi que estava ficando preso por causa do patrocínio. E eu não podia viver assim. Ia contra meus valores, meus princípios”, diz Leivinha.

 

O quarto festival saiu, porém não era mais o mesmo. Para piorar, uma grande tempestade destruiu boa parte da estrutura. “Comecei a ver os problemas que o festival estava me criando. E o público não era mais o mesmo. Vi que aquela energia que flui em festivais não estava fluindo mais. Foi tenso”, lembra.

 

Leivinha tentava se equilibrar entre os problemas causados pela tempestade, os compromissos impostos pelos patrocinadores e o anticlímax de um público estranho a Águas Claras – em um momento do show do cantor Paulo Moura, um espectador chegou a lançar uma garrafa em direção ao palco. Para piorar, ele confessa ter sentido a pressão para se superar a cada nova edição. “Eu já tinha feito o maior festival de música do Brasil. Dali em diante, não poderia fazer mais ou menos. Minha vida vai parar, pensei. Foi aí que decidi interromper o festival no meio”. Assim acabava a história do “Woodstock brasileiro”.

 

Destino: Cuiabá

 

No mesmo ano em que aposentou Águas Claras, Leivinha já estava à procura de novas histórias rumo ao Norte do País. De carro a caminho de Rondônia, onde pretendia comprar uma fazenda, ele precisou parar temporariamente em Cuiabá em razão de um problema de saúde da filha. Uma parada temporária que já dura 35 anos.

 

O começo em Cuiabá, ainda morando em um hotel, foi um tanto acidentado. A chegada coincidiu com um grave problema financeiro. Correntista do Comind (Banco do Comércio e Indústria de São Paulo), Leivinha foi uma das vítimas da falência da instituição financeira. E quebrou junto.

 

“Aí tive que fazer alguma coisa. Tinha três filhos e precisava trabalhar. Não queria advogar, mas acabei advogando. E deu certo. A advocacia, para mim, foi muito bom, recuperei o que havia perdido. Mas poderia ter uma vida diferente. Neste período, acabei não indo mais a São Paulo e me desliguei de todas as pessoas com quem convivia lá”, lamenta.  

E decidi que levaria o João Gilberto. A primeira coisa que disseram era que eu estava com febre

 

Um lance do destino talvez explique a permanência da família em Cuiabá. Impressionado com a efervescência econômica da cidade na primeira metade dos anos 80, Leivinha propôs um desafio à ex-esposa nos primeiros dias de estadia: se até o final de uma manhã, ele tivesse alugado uma casa e ela encontrado escola para as crianças, era porque deveriam morar em Cuiabá.

 

“Quando pisei na calçada, ouvi alguém gritar meu nome. Era uma pessoa que me conhecia do festival”, recorda. A pessoa em questão tinha uma imobiliária e logo Leivinha já havia arrumado uma casa no Bairro Santa Rosa. “Quando cheguei no hotel, minha mulher disse que as crianças estavam matriculadas. Assim ficamos por aqui”.

 

O Direito não foi a última aventura de Leivinha. Desde o início da década ele mora em Chapada dos Guimarães, em uma casa à beira de um penhasco, onde também mantém a Pousada Atmã, cujo restaurante foi considerado o melhor da cidade pela Veja Comer & Beber. “Decidi transformar minha casa em pousada porque seria muito egoísmo ter toda aquela vista e não dividir com as pessoas”, orgulha-se.

 

Sobre o serviço na pousada, diz que tenta manter o nível de todas as outras suas empreitadas. “Fiz um bom festival, fui um bom advogado. Tenho quer ter um bom restaurante também”.

 

Nas paredes da pousada Leivinha expõe recordações de seu maior feito, como uma foto sua ao lado de Raul Seixas e Wanderléia. Talvez o embrião de um museu sobre o Festival de Águas Claras que ele pretende um dia criar.

 

 


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